Uma
das primeiras visitas que recebi, depois de vários dias no seminário, foi a de
meu pai que me disse que ele e a mãe rezavam por mim. Tomamos as escadarias e
corredores do vasto seminário, para que meu pai conhecesse as salas de aulas,
Sala Magna onde aconteciam palestras e onde se via televisão, sala de jogos,
biblioteca, dormitório, sala de pesquisa, laboratório, refeitório, instrumentos
musicais, campos de futebol de salão e de campo, basquete, piscina, refeitório,
capela, gruta, entre outros espaços daquele lugar paradisíaco.
Quando
passamos pelo saguão central, vimos um padre professor, pensativo, mãos atrás
das costas a observar a paisagem emoldurada pelos morros do outro lado do Rio
do Peixe. Meu pai se sentiu comovido com aquela cena.
Expliquei
que não era tristeza e que aquele semblante sério era aparente, casualidade de
reflexões diárias cavadas na circular em frente ao museu do seminário.
Realmente,
Frei Pe. Anselmo Hugo Scheitzer, nas aulas de história e inglês, abria o
coração e era simplesmente espetacular ouvi-lo animado, vivenciando o conteúdo das
matérias que lecionava. Era o nosso “Behind”, apelido que a turma lhe deu, de
tanto ouvir a frase, “benhind the door”.
Os
anos seguintes revelariam o tamanho do ideal de Frei Anselmo e a sua força de
ação na evolução do espírito de todos aqueles que foram seus alunos. Ao lado da
brandura de Frei Pe. José Lino Luckmann, lá estava um verdadeiro exemplo de
amor e vocação franciscana. Porém nossos contatos naquele ano restringiram-se
as aulas. Fora delas nossos caminhos se cruzavam num ‘bom dia’ ou ‘boa
tarde’. Na realidade parecia que Frei Anselmo não simpatizava muito com
minha exagerada e regular espontaneidade.
Coisa
engraçada a vida... Nem suspeita passava pela cabeça de todos, tão tranquilos e
róseos os dias repletos de esplendor marginados de harmonia que nos concedia a
vida, da dor que a fatalidade nos reservava.
Chamado
por Deus, parte Frei Solano, Orientador
do seminário, rumo ao encontro marcado no alto dos céus, depois de vários meses
adoentado em Curitiba.
A mórbida
morte silenciou o refeitório, parou os risos e encardiu o ar da capela com um
cheiro de flor de velório. E os risos? O truco, o sangue fervendo nas peladas,
a ideia correndo nos campos que deixara em casa, pensando em nunca mais voltar?
Nunca mais. A presença deste pensamento arrefeceu a beleza imperturbável da
alegria do meu coração adolescente. Senti-me entristecido, amortalhado com
aquela música fúnebre.
Frei
Solano, adeus. Muitos choraram na concelebração da missa de despedida. Os seminaristas
falavam de um frade carismático, humano, disciplinado e companheiro. Difendi
Masson, da turma de 1971, contou que as repreensões, quando necessárias, as
vezes eram de varadas simbólicas, até bem humoradas, que não chegavam a
encostar nos alunos que teimavam em sair da linha.
Na
capela lotada, familiares de Frei Solano, vindos do Paraná, cansados pela longa
viagem, pareciam incrédulos com aquela atmosfera de despedida e de fé. Entre
eles um menino, sobrinho de Frei Solano, perdia o olhar no infinito, na certeza
de que não mais ingressaria no seminário...
O
entardecer baixava a sepultura, juntamente com o frade Orientador, ex-hospede
dessas plagas, que definitivamente desenhava a ponto final na história de sua
vida.
Para
quem conhece a doutrina cristã, a perplexidade, a amargura não tem razão de
existir perante o drama profundo que se descortina no sofrimento da morte.
Sentimos a sórdida e mórbida ausência de quem amamos, mas nos conforta a força
da lei divina que providencia as alegrias nessa terra e as estende,
generosamente por concessão, à luz eterna.
Todas
as vanglórias viraram um punhado de cinzas e as pernas pareciam pesar excessivamente
na saída do cemitério de Joaçaba. Andando ao lado de Frei Anselmo, paramos na
subida que levava à saída, para observar a dolorosa impressão de tristeza que a
cruz do portal causava.
De
cabeça erguida, com o vento soprando enfermo pelas rajadas de emoção que
enregelavam o coração, depois de um dia obscuro e melancólico, Frei Anselmo
calmamente louvou a Deus pelo convite a vida e enigmaticamente balbuciou: “Dentro
em breve também entrarei por baixo desta cruz para não mais voltar.”
Um
calafrio me passou pela espinha e aquelas palavras ficaram retumbando por algum
tempo na minha cabeça.
Agora,
distante daquele dia de há 46 longos anos, abro os olhos com força, mas a
tristeza ainda permanece e me angustia.
Aquela cruz era um flagelo.
E sofro.
Aquela cruz era um flagelo.
E sofro.
O nome
de batismo de Frei Solano era Miguel Hubner.
Nome
religioso; Frei Solano Hubner, ofm.
Nasceu
na cidade de Selbach, Rio Grande Do Sul.
Seus
pais eram Verônica e Alberto Hubner, de origem alemã.
Faleceu
com 2 de junho de 1972.
Seu
corpo está enterrado em Joaçaba SC.
E
aquele menino, retornou no ano seguinte, em 1973. Tarcísio Hubner não encontrou
mais seu querido tio. Mas seguiu em frente nos estudos, talvez com a impressão
de que ainda poderia encontra-lo, algum dia qualquer, no final de algum daqueles
infindáveis corredores do Seminário de Luzerna.
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