Quem não pensa nas consequências
sobre a igreja, família, a comunidade, a sociedade, a coletividade,
necessita saber da “pacificação” diante das drogas, e não da guerra. Não
é o mesmo que preparar o Rio de Janeiro para a Copa do Mundo. Paz com as drogas
significa compaixão, inclusão, aceitação, cuidado, misericórdia, e não condenação
abstrata. Doentes precisam de tratamento e não de cadeia (ou condenação), onde
a droga é liberada e consumida à luz do dia (Dráuzio Varella). Hospitais,
ambulatórios, saúde assistida são direitos humanos que devem ser
buscados.
Muitos movimentos e grupos
religiosos, igrejas e ONG’s mostram interesse pelo indivíduo enquanto servem
como “laranjas” de causas eleitoreiras, servindo políticos inescrupulosos,
enquanto recebem verbas do governo com propina garantida (10, 20%, depende...).
Sujam dinheiro limpo. Diante das leis de repressão e violência inaceitáveis
contra pessoas doentes ou drogadas, em dez anos, Portugal reduziu drasticamente
o consumo de drogas cuidando do usuário com tratamento médico, e não
apontando-o como criminoso (52% deixaram a droga). Enquanto isso, reduziu-se o
campo de atuação do traficante. Dizendo “não” aos riscos da clandestinidade, a
medicina regular é aberta aos que querem ser tratados. A maioria.
Para o Evangelho, o “locus
teologicus” é o “despoderado” (hebraico: anawin; grego: ptochos), encurvado,
dobrado pelas circunstâncias, perseguido, humilhado pela própria vida. Na
Bíblia, é o ignorado e desprezado pela própria sociedade (e o Estado). É o
perseguido pela polícia e explorado pela polícia corrupta. Mas a sociedade religiosa
é a primeira a excluí-lo e identificá-lo como pecador, e eximir-se de
responsabilidade e culpa pela injustiça. Prefere sustentar o preconceito.
A compaixão escapa aos regimentos e declarações doutrinais em gabinetes
eclesiásticos. Devemos nos surpreender com isso, uma vez que a sociedade,
biblicamente, é casa, lar, “oikos”. O “sócio”, συνεργάτης (sunergates), é o
companheiro, um irmão de grupo numa mesma sociedade. Essas duas realidades
fundamentais de todos os seres humanos encontram o sofredor no usuário de
drogas, no deficiente, no portador de HIV, no oprimido pelas enfermidades
físicas ou sociais (cf. tabagismo, alcoolismo, drogadismo, sexoaholismo, etc.),
no meio e junto ao grupo maior, o todo, a coletividade humana.
Como dizia alguém, “o moralismo é
o último refúgio de um canalha” exatamente porque é suficientemente abrangente
para deixar todas as patifarias, corrupções, protegidas, ao abrigo de um
suposto interesse coletivo por justiça ou “transparência”. O político é
contra a inclusão homossexual; usa a camisa preta contra a pedofilia, na
campanha. Pego pelo Ministério Público roubando do erário sem qualquer pudor,
mas permanece impune. Depois, é premiado por mais um mandato pela comunidade
evangélica. Nunca se compromete com leis de responsabilidade social para com o
usuário de drogas, porque vive do assistencialismo oportunista. O mais
inexpugnável dos inimigos da justiça é o falso moralista, o oportunista de
quaisquer matizes, ideológico, partidário, intelectual, político, religioso. Em
todos os moralistas existe a voracidade insaciável e destruidora de uma “aids
social”, de um “câncer dos costumes” (W. Siqueira), como se diz da droga.
Jesus declarou-se abertamente
contra a idolatria da letra morta, ou seja: a lei moralista “...o homem
não foi feito para o sábado” (Mc 2.7). Ninguém foi feito para a lei!
Declarações condenatórias engessam a misericórdia, o cuidado, o serviço ao
próximo que ignoram o ser humano e suas necessidades, apontando subjetividades
como: “na igreja não somos assim”. Repetem a oração do fariseu (Lc 18.9-14).
Enfim, Jesus se prontificava a combater a religião sem misericórdia e
solidariedade, porque esta omitia direitos fundamentais. O povo simples se
encantava com a ousadia de Jesus expondo à luz do dia a ideologia religiosa
reinante.
“Hipócritas”, “túmulos brancos
por fora, podres por dentro”, “tira primeiro a trave do teu olho, antes de
julgares” são imprecações de Jesus dirigidas aos condutores da sociedade religiosa,
ou civil. Precisamente por isso Jesus lutou contra os demônios que dominam a
consciência social; contra as ideologias instaladas nas sinagogas (qhal ou
edah: igrejas judaicas), no Templo e na sociedade. Jesus não se identificou com
propósitos religiosos moralistas no combate às doenças socializadas. Jesus não
aprovou oportunistas da miséria, exploradores da credulidade popular, invadidos
por “espíritos imundos”: “Eis que faço novas todas as coisas” (Ap 21.5).
É lavando as mãos que Pilatos
entra no Credo. O caráter normativo (referência) do Evangelho há de nos
lembrar: aos perseguidos, discriminados, desgraçados e enganados deste mundo, o
Reino é anunciado: “bem-aventurado é aquele que não se escandalizar com a minha
causa” (Lc 7.23). Nesta passagem se expressa o centro vital da mensagem de
Jesus. Isso significa que Jesus sabia das palavras de Jeremias (cf. Jr 31.33).
“Cada um levará a Lei no coração”. Ou seja, terá consciência da justiça,
das leis de responsabilidade social. A Lei não é uma obrigação, mas uma dádiva
orientadora para todo o povo. Nenhuma “lei” ou declaração religiosa moralista
terá efeito sobre o que é responsabilidade do Estado. O fruto ruim nos obriga a
uma nova semeadura para um mundo novo possível.
“A ONU declarava guerra à droga
estimulada pelo moralismo religioso dos Estados Unidos”. (...) Guerra à droga?
A paz com usuários é que deve ser buscada”, diz o sociólogo Fernando Henrique
Cardoso no documentário “Quebrando o Tabu”. Toda guerra favorece à indústria da
morte. Envolve interesses econômicos e oportunismo político. Matar, anular,
castrar, reprimir, excluir, dessocializar, é o nome da guerra à droga.
Criminalizando, quem lucra são os traficantes, o crime organizado e a polícia
corrupta. Não sobrevivem sem a droga, seja crack, cocaína, ópio ou
heroína.
Fonte: Revista Ultimato
https://www.ultimato.com.br/conteudo/o-evangelho-e-o-falso-moralismo