domingo, 27 de março de 2011

FREI ANSELMO HUGO SCHWEITZER






1975

Foto: 1972 todos os alunos com Frei Anselmo, em frente ao seminário.

FREI ANSELMO PARA SEMPRE
(Texto escrito em 1976)

Rosto sereno, os olhos de um azul aguado, vestindo um paletó cinza claro, distante das lutas e dificuldades que passara, dos longos e penosos dias de sacrifício e renúncia, da saudade do pai querido que ficou saboreando a amargura da despedida... Tempos idos, dor antiga, reminiscências, e tão perto do ataque cardíaco que fulminaria os últimos brilhos do sol refletido em seus cabelos cinza.

Techio, vamos visitar a casinha do outro lado do rio? Vamos neste domingo. Olhava lentamente uma casinha de madeira encravada no sopé da montanha, do outro lado do rio do peixe. Há anos, quando caminhava em círculos pelo saguão, parava em suas lembranças para observar, junto à janela, aquela bela paisagem. O fazia pensativo e misterioso, certamente com a imagem melancólica de sua infância fluindo como num velho filme. o potreiro verde, os cavalos, a simplicidade da gente do campo, suando sob o sol quente, na briga pela sobrevivência, lugares e cenas tão íntimas e conhecidas.

Não tínhamos total consciência de que Frei Anselmo sabia da morte iminente. Em 1971 já sabia que lhe restavam, ainda, poucos anos de vida. Mesmo assim, conservou-se sereno como um santo, fiel como um verdadeiro franciscano aos compromissos como padre, pregador, professor. Jamais se percebeu qualquer desespero em seu semblante. Apenas sentimos que, com o passar do tempo, ficava introspectivo mais horas. Em seu quarto, sozinho, abria o acordeão e de longe se ouvia músicas que enterneciam e tocavam o coração. Eram músicas suaves, que embalavam o espírito, músicas sentidas, belas como o céu.

Realmente, sua mana, Irmã Lucia, nos relatou que pelo ano 71...:

-Pelo ano 71, fui com uma irmã visitá-lo, em Luzerna. Estava contente, mas parecia não estar bem de saúde. Mostrou-nos, com grande carinho, os jardins que tinha plantado e preparado com os alunos e também os bosques onde gostava de ir para suas meditações. Levou-nos a uma linda gruta de Nossa Senhora de Lourdes, bem distante, mato adentro. Estando lá, com ele, vi como se sentia bem naquele lugar devoto. Olhava muito tempo para a Mãe Maria. Falando depois com uma irmã, enfermeira do hospital, ela nos disse. Anselmo não esta bem. Pela radiografia vi que ele tem um coração muito grande. Ele está em perigo. Lembrei de sua última visita ao Mato Grosso, ficou uma semana comigo. Perdia-se em contemplar as belezas da natureza e suas conversas eram edificantes.Cantava comigo os lindos cantos de Natal do tempo de criança...

No fim de 1974 veio mais uma vez ao Mato Grosso. como não estava bem do coração, convidou um confrade para vir em sua companhia. Chegaram às vésperas do Natal. Estavam alegres. Gostou muito de ver como os pescadores tiravam do cercado do rio grandes peixes. Dizia, rindo: ‘Os peixes pulam na água como cavalos’. Depois de oito dias, despediu-se para a viagem de volta. Era uma noite linda de luar do Mato Grosso, pode-se dizer uma noite prateada. Disse. ‘Estou contente em vê-la feliz. Outra vez que eu voltar ao Mato Grosso, quero ver o pantanal. Escreveu um mês depois. Tive hemorragia nasal. Perdi 2/3 do sangue. Já não tenho forças. QUANDO O SACERDOTE ME UNGIU, ESTENDI MINHAS MÃOS COM TODO O ABANDONO A VONTADE DE DEUS. FIZESSE DE MIM O QUE QUIZESSE. ESTOU CONTENTE EM MORRER’.

Depois que se despediu de nós, em Mato Grosso, escreveu mais vezes, falando das belezas daquele Estado. Sempre que nos escrevia, falava dos seus queridos alunos seminaristas. Era esse o maior assunto de suas cartas. Os seus alunos. Meio ano depois que esteve conosco, recebemos um telefonema que Anselmo tinha tido um enfarte. Irmã Hilda havia voltado de Rondônia por um acaso. Seguimos logo para Luzerna. Quando chegamos no seminário eram 11 horas da manhã do dia 22 de julho de 1975 e Anselmo tinha falecido as 07 horas da manhã. Nossa outra irmã nos disse: ’Quando Anselmo soube que estavam de viagem disse. ’Como são boas as minhas irmãs’. O reitor do seminário, Frei Danilo, disse. ‘ANSELMO ERA UM GRANDE ENAMORADO DA IRMÃ MORTE’. ‘Em quase todas as cartas Anselmo mencionava a brevidade desta vida e do grande desejo que tinha do céu. ‘LÁ VEREMOS A DEUS. NO CÉU ESTAREMOS NA ETERNA PAZ. NO CÉU VEREMOS NOSSOS PAIS QUERIDOS’.

Está bem, Frei Anselmo, vamos visitar aquela casinha. Vou convidar o Egídio. Era inicio de junho, fazia um sol magnífico no vale do Rio do Peixe. Algumas nuvens brancas formavam figuras, refletindo-se nas águas do plácido rio. O bote do seminário não estava pelas imediações. Chamamos o barqueiro que morava na margem oposta. Era uma canoa muito velha. Mesmo assim estávamos felizes, sem medo. Cantamos assim. ‘Barquinho feliz, abençoado por Deus...’

Chegando no outro lado. Atravessamos um linha férrea, contornamos o mato de folhagens vermelhas, passamos numa ponte sobre um riacho e, enveredamos por uma estradinha de terra, margeada de flores amarelas. A passarada voava de um lado ao outro e o bem-te-vi subia junto, pelo riozinho, paralelo a estrada. Fomos devagar, apreciando tudo, inspirando o ar puro do verde. Comentamos sobre a saúde de Frei Tarcísio, que estava acamado.

Frei Tarcísio anda muito nervoso. Deu uma compostura nos alunos, no refeitório. Tem gente fazendo muita bagunça. Confundindo liberdade com libertinagem. O Senhor Viu seu estado?

Frei Tarcísio é santo. gostaria que vocês tivessem certeza disso, assim como eu tenho. É um homem puro, correto e que não merece o que alguns alunos sem juízo estão fazendo. Ele se preocupa demais com vocês, notem sua extrema dedicação. É um grande padre. Ele exige demais de si. O Senhor Soube da palestra que ele deu, no retiro?

Sim, o Tarcísio está muito a frente, mais próximo da perfeição. É um homem puro, repito, e serve como exemplo para nós seus confrades e para muita gente. Tem um caráter firme e é convicto do que diz.

Será o que ele tem? Não é possível que esteja acamado só por causa da gripe. -Não tenho dúvida que alguns alunos foram a causa. Ele perdeu peso este ano e está muito nervoso, gasta muita energia para se conter e ninguém percebeu. Penso que o Tarcísio vai para o CEFEPAL no ano que vem, para descansar e recuperar as forças físicas, pois estas, em detrimento das forças espirituais que são inabaláveis em sua alma, já o abandonam, tanto trabalho e sacrifício se impunha.

Veja, Frei Anselmo. A casinha ! Não esqueço seu contentamento. Abrimos a velha porteira e entramos na propriedade. Na varanda, nos esperava uma velhinha, cabelos de neve, sentada numa cadeira de balanço.
Boa tarde vovó. A velhinha, arqueada sob o peso dos oitenta anos, olhou pelas sobrancelhas brancas. Parecia acordar de uma longa solidão. Seus olhos envolveram-se em lágrimas. -Subam, meus filhos, que alegria para esta velha. Estou sozinha. Todos os outros estão trabalhando na roça.

Enquanto Frei Anselmo conversava com a anciã, fomos tirar frutas. Era um lindo sítio, cheio de fruteiras e flores silvestres. Passamos uma tarde inesquecível. Na despedida beijei o rosto da vovó. Retribuiu com um olhar de profunda ternura. Já no portão, abanamos para o adeus. Na estrada, Frei Anselmo disse.

Esta vovó não esquecerá do beijo que você lhe deu....não vou chegar a esta idade. Vou partir bem antes, pedi que rezasse por mim. O que o Sr. Está dizendo? Vai viver muitos anos ainda. Não. O meu tempo está perto. Muito próximo. Nunca tenha medo da morte. Quando ela nos leva tudo fica em paz. Não vejo a hora de ir para junto de Deus e Maria Santíssima. Não tenho mais nada a fazer aqui. Minha missão esta cumprida. Acho que também posso dizer que combati o bom combate. Esta é minha ultima visita. Há anos que eu queria vir. Agora vou morrer em paz, não preciso mais de despedidas.....

Falava já com alegria. Chegamos até a nos sentir felizes com sua morte. Era um absurdo, ali estávamos nós, louvando a irmã morte. Era verdade, não precisava mais de tristes despedidas junto aos familiares que tanto amava. Quem conta é sua sobrinha, RITA DE CÁSSIA SCHMITZ MASS, residente em Baixo Canoas –88.325- Luiz Alves-SC.

"Da última vez que esteve aqui, já não veio mais sozinho. De Luzerna a Blumenau, sim, mas depois veio acompanhado por um sobrinho, pois não se arriscava mais a andar sozinho. Ao chegar quis rever tudo e todos. a antiga morada ( a casa já não existe mais), as terras, os parentes, os amigos. Olhava tudo com uma tristeza muito grande nos olhos. Olhava tudo como se fosse uma despedida. Era uma sexta feira. Ele queria passear bastante. No sábado de manhã, estávamos todos sentados a mesa do café. meu pai, minha mãe (sua irmã), quatro sobrinhos e Frei Anselmo, quando ele, com muita naturalidade, começou a contar sobre a sua doença, que a morte estava muito próxima, talvez em poucos meses, três ou quatro. Iria morrer muito breve. Chocamos-nos com aquela notícia. Foi uma triste surpresa. Minha mãe pediu para ele que não falasse assim, que isso não podia ser verdade, era muito triste para ser verdade. Ele abaixou a cabeça. Ficou um longo tempo em silêncio, muito triste. Depois disse que aquela era uma visita especial para nós. Era a última, a despedida. Pediu que, quando morresse, ninguém chorasse. Ele morria feliz. Na mesma noite que nos fez essa confissão, começou a sentir-se mal. Meu pai (seu cunhado) queria levá-lo ao médico para medir a pressão, mas ele não queria ir. Tanto meus pais insistiram que ele foi. A pressão estava muito alta. Depois de o médico consultar, voltou para casa. Insistiu para dormir no quarto da capela, sozinho. Na manhã seguinte, no domingo, ia rezar a missa cedinho. Quando chegamos na capela vimos a toalha de rosto toda ensangüentada. Havia passado a noite com hemorragia. Durante a missa também sangrou muito. Depois passou o dia na nossa casa, tomando limonada gelada para estancar o sangue, até que melhorou.

No dia seguinte, enquanto fazíamos os serviços diários, antes de viajar, veio da capela de malas prontas e pediu que parássemos de trabalhar por uns instantes. Disse que tínhamos muito tempo pela frente para trabalhar, ele não, era a última vez que conversava com a gente. Então sentamos todos ao redor dele. Conversou por muito tempo, até que chegou a hora de partir. Ficou muito triste, mas não queria despedidas. (quando vinha pra cá, na hora da partida, distraia a gente e quando estava longe, na estrada, sorria e acenava. Anselmo não gostava de despedidas por ser um momento doloroso, a separação). Quando saiu daqui, pela última vez, pediu que ninguém chorasse ou demonstrasse muita tristeza. Ele era muito sentimental e não suportaria, por ser a última vez. Apenas acenou com muita tristeza, deixando saudades em nossos corações, para sempre. Ao sair da casa, foi até o aparelho de som e colocou ‘cascatinha e jana’, cantando a canção ‘India’, que ele tanto gostava, e partiu. Muito tempo, aqui em casa, nossa família não podia ouvir a canção sem chorar. Depois de três meses recebemos, com muita dor, a noticia de sua morte...’

Chegamos em casa cansados, mas felizes. O passeio pelo rio do Peixe, valeu a pena... Alguns dias depois, após a janta, aconteceu o esperado. Um violento ataque cardíaco prosta Frei Anselmo em insuportável dor no peito, ao fechar a porta do seu quarto, no convento, após a janta. A pressão da mão, ao cair, arrebentou a maçaneta da porta. Caiu no chão do corredor e foi socorrido pelos frades no mesmo instante. Foi deitado na cama, enquanto vomitava a janta recém ingerida. Num murmúrio rouco, Frei Anselmo repetia: É o coração, é o coração. dói muito, é o coração.

E segurava as mãos contra o peito. Em minutos chegou o médico. Constatou a pressão em zero. Desci correndo até a paróquia buscar os ‘Santos Olhos’. Não encontrei o padre vigário nem o que procurava. Telefonei na hora para a paróquia de Joaçaba e Herval D,Oeste solicitando aos frades que fossem esperar a ambulância que chegaria com o Frei Anselmo. Atitude oportuna, pois ao chegar, Frei Anselmo pode receber a extrema unção. Passei a noite no hospital. Frei Danilo permaneceu acordado, atento a noite toda. Segurei a mão de Frei Anselmo todo tempo para que não dobrasse, pois estava com soro e se movia constantemente.

Nesta noite, aconteceu um ‘quebra quebra’ no quarto ao lado. Um bêbado ensangüentou todo o quarto enquanto gritava como um louco. Tive de ajudar a segura-lo. Quando retornei, percebi uma claridade tênue no quarto de Frei Anselmo. Senti uma imensa paz junto daquele rosto pálido e sereno. Pensei no contraste com o quarto ao lado e nas poucas chances de vida de Frei Anselmo. Na sexta feira seguinte fui indicado para passar a noite, com Frei Anselmo. Quando me viu, seus olhos se iluminaram. Ladeado pelas suas irmãs, disse: -Esse é um bom menino. Foi a ultima vez que o vi com vida. A noite, quando descia do carro para entrar no hospital, Frei Rainério solicitou, que voltasse para o seminário, pois ele ficaria no meu lugar, junto com Frei Danilo. -Você tem muita responsabilidades nesta noite, em casa. Era verdade. O som, o leitão, etc, para a festa de São João, estavam por minha conta. A festa terminou tarde da noite. Pela manhã notei algo esquisito no ar. Às sete horas entrou, apressado, Frei Tarcísio, batendo palmas para acordar do sono. Frei Anselmo acaba de falecer. Uma bomba explodiu no meu peito. Era para estar lá, do lado dele. foi um choque muito dolorido,desci para a rouparia como um sonâmbulo. Aguardei a chegada do caixão, junto ao hall de entrada. Ao ajudar no transporte do caixão, do carro para a capela, pensei, chorando. -Vem, filho querido, entra pela última vez na tua casa. A noite foi muito triste. Coloquei as fitas gravadas por Frei Anselmo para tocar na Capela. O dia fora extremamente cansativo. A noite, na hora de descer com os colegas para ajudar a velar o corpo, não tive forças. Permaneci na cama. Tinha a impressão que também tinha morrido. Na manhã seguinte chegaram os pais. A tarde participei, fazendo as leituras, da missa concelebrada. Fui o último, antes dos seus irmãos, a tocar pela última vez naquelas mãos. Subi na carroceria do caminhão de Frei Aloísio na hora do translado para o cemitério de Joaçaba. O vento frio chicoteava meu rosto e gelava minhas lagrimas.

Frei Anselmo foi colocado no túmulo acima do de Frei Solano. Ao sair do cemitério observei a cruz no portão principal. Lembrei da profecia de alguns anos antes.
"Um dia vou passar por debaixo desta cruz para não mais voltar..."

A profecia se cumprira. Sai sofrido, por debaixo daquela cruz, mas senti que não andava só.Um espírito iluminado me acompanhava.

PE. FREI ANSELMO HUGO
Sexta-feira, dia 20/06/75, ao meio dia, falando comingo disse.Sabe Emilie, eu gostaria de morrer’.Eu estou preparado. Sempre me esforcei para fazer o bem. Deus sabe. Sempre tive boa vontade e procurei de fazer o bem. Deus prometeu 100 por um e a vida eterna. Aí está. Esta morte é uma graça. Se Deus me chamar vou feliz. Vocês não chorem. Podem sim mandar rezar uma missa. Morrer como papai morreu, é uma graça.

NASCEU 18/01/1927
ENTRADA NA ORDEM 19/12/1949
VOTOS SOLENES 20/12/1953
ORDENAÇÃO 02/07/1956
FALECIMENTO 22/06/1975


VEJAM O ALBUM DA FAMÍLIA SCHWEITZER http://albumdefotos02.blogspot.com/